O compromisso de vida com a filosofia e o progresso
Augusto Salazar Bondy (1925-1974) iniciou os seus estudos universitarios na Universidade de S. Marcos, onde fez a licenciatura em Humanidades (1950), concluindo o seu doutoramento em Filosofia, com a tese ‘Ensayo sobre la distinción entre el ser irreal y el ser real’ (1953).
O seu espírito idealista e perfeccionista levou-o a trilhar novos caminhos, aprofundando os seus estudos na Universidade Autónoma do México, onde conheceu Leopoldo Zea, e no Colégio de Filosofia. Foram por demais conhecidas as polémicas travadas com o filósofo mexicano acerca da existência ou não de uma filosofía distintiva no continente americano. No México, Bondy também teve a felicidade de conhecer José Gaos, o primeiro tradutor para espanhol do ‘Ser e Tempo’ e grande impulsionador do existencialismo e da história das ideias na América do Sul, e com quem debateu a realidade sócio-política e o desenvolvimento do pensamento ibero-americano.
Num périplo pela Europa (França, Alemanha e países escandinavos), frequentou as Universidades de Paris (com Jeah Wahl, Jean Hyppolite e Gaston Bachelard) e Munique. Em 1955 regressou à Universidade de S. Marcos, como catedrático, pasando a leccionar as cadeiras de Introdução à Filosofia e Metodología da Educação, na Faculdade de Educação. Augusto Salazar Bondy tornou-se uma das figuras mais reconhecidas no panorama científico e filosófico latino-americano, a partir do interesse demonstrado pela temática ético-axiológica e científica, mas fundamentalmente pela análise social e discussão críticas, da realidade peruana. Neste contexto, teve um importante papel na tematização da natureza do filosofar latino-americano, em termos de cultura de dominação.
A sua actividade política e educativa mais relevante decorreu entre 1970 e 1974, durante o governo nacionalista de Juan Velasco Alvarado, no qual Bondy se constituíu como uma das figuras mais dinâmicas da reforma da educação peruana.
O seu contributo fica, assim, indelevelmente marcado pela atitude comprometida com o seu tempo e com os problemas humanos da liberdade e dos valores.
A identidade latino-americana e o binómio originalidade/autenticidade
Augusto Salazar Bondy foi um dos teóricos da chamada FL (filosofia da libertação) um das aspectos em que mais reflectiu foi exactamente naquilo a que se viria a chamar a ‘filosofia hispano-americana’ e cujas ideias são negativas, quanto á sua natureza própria e original. Para compreender os conceitos de originalidade e autenticidade em Salazar Bondy e o que significa para esse autor uma filosofia original e autêntica, é preciso definir a sua concepção de filosofia.
A Filosofia para Salazar Bondy, segundo o próprio é: ” … varias cosas: es análisis, es iluminación de la experiência del mundo y de la vida; entre estas cosas es tanbién la conciencia racional de un hombre y de la comunidad en que éste vive, la concepción que expresa el modo cómo las agrupaciones históricas reaccionam ante el conjunto de la realidad y el curso de su existencia, su manera peculiar de iluminar e interpretar el ser en que se encontran instaladas. “ (….)
Salazar Bondy faz, contudo, algumas distinções. Para ele, a filosofia distingue-se da ciência pelo facto de se referir ao todo, ao conjunto do dado e, portanto, ao Homem em geral, ao passo que a ciência não visa o Homem na sua totalidade. A filosofia distingue-se também da religião, pois enquanto a última tem como ponto de partida os sentimentos e a crença, a primeira parte dos dados objectivos, ou seja, do mundo, da vida, com o intuito de racionalmente os tornar inteligíveis. Neste sentido, Salazar Bondy dá à filosofia o carácter de compreensão racional da realidade, no sentido de buscar uma explicação total.
Salazar Bondy ao tratar da filosofia latino-americana utiliza os conceitos de originalidade e autenticidade que são conceitos que se relacionam entre si, ao mesmo tempo que são acompanhados do conceito de peculiaridade. Torna-se necessário definir e articular esses conceitos conforme a concepção do autor.
Por originalidade, entende “el aporte de ideas y planteos nuevos, en mayor o menor grado, com respecto a las realizaciones anteriores, pero suficientemente discernibles como creaciones y no como repeticiones de contenidos doctrinários.”
O conceito de autenticidade, por sua vez, é concebido pelo autor como “…um producto filosofico – al igual que un produto cultural calquiera – que se da como propriamente tal y no como falseado, equivocado o desvirtuado”.
Por fim o conceito de peculiaridade entende-se como “… la presencia de rasgos histórico-culturales diferenciales, que dan carácter distinto a un producto espiritual, en este caso filosófico; se trata de un tono, digamos, local o personal , que no implica innovaciones de contenidos sustantivos”.
Todos estes conceitos estão intimamente ligados, porquanto uma filosofia de carácter original, tal como definimos antes, também o é autêntica, visto que um produto que resulta como uma criação nova e esta não pode deixar também de ser autêntica, no sentido de não ser falsa, dominado pela ambiguidade. Por outro lado, uma filosofia de carácter autêntico, possui um carácter original, pois um produto filosófico não falseado, nem equivocado, não resulta numa simples repetição doutrinária de conteúdos.
Entretanto, o conceito de peculiaridade possui uma determinada margem de independência em relação aos conceitos de autenticidade e originalidade, ou seja, uma filosofia original e autêntica também é peculiar, mas nem toda a filosofia de carácter peculiar tem que ser necessariamente autêntica e original.
Com efeito, a peculiaridade de determinada filosofia pode ser simplesmente uma imitação (portanto, sem ser original e autêntica) com traços culturais e históricos distintos, de outra filosofia produzida num contexto histórico e cultural diferente, pelo facto de lhe imprimir um cunho particular na sua focalização ou aplicação.
Segundo Bondy, redesenhar a evolução filosófica latino-americana actual (séc.XX), não passa de uma narração da filosofia europeia na América hispânica, e não constrói uma filosofia autenticamente latino-americana. Bondy considera que neste processo historico deparámos com tradições cartesianas, krausistas, spencerianas, bergsonianas e outras, mas nunca existiram figuras criadoras que fundassem e alimentassem uma tradição própria nem ‘ismos’ filosóficos autóctones. Nada há de substantivo digno de merecer uma valorização histórica positiva, nem pode testemunhar a existência de um pensamento original. Em inúmeras obras, em particular em ‘¿Existe una filosofía en nuestra América?, Bondy manifesta a sua ideia-chave de que o pensamento filosófico latino-americano está desprovido de um carácter próprio, sendo puramente imitativo.
Negatividade e alienação
O pensamento filosófico latino-americano ou qualquer outro com propósitos explicativos similares, oferece, segundo Augusto Salazar-Bondy, um selo de negatividade, uma consciência ilusória que o impede de assumir a sua própria inquietação histórico-existencial. Devido ao seu carácter redundante e copiado de modelos europeus, a consciência latino-americana tornou-se, segundo ele, uma consciência alienada e alienante, que deu ao homem destas latitudes uma imagem superficial do mundo e da vida. Claro que este aspecto culturalmente deficitário tem uma causa histórica irrefutável: a imposição de uma filosofia ‘estranha’ pelo conquistador europeu, de acordo com os interesses sócio-políticos e religiosos do dominador!
Ao invés de ser expressão do sentir e motivações do homem americanista, o pensamento latino-americano tornou-se eco dos objectivos e interesses vitais de outros homens, um pouco à semelhança de uma novela plagiada e artificial. Esta situação problemática leva a que concluamos as razões práticas dessa inautenticidade. Segundo o autor peruano, foram quatro:
- Um sentido imitativo da reflexão – a filosofia latino-americana pensa de acordo com moldes teóricos já formatados aos do modelo occidental, fundamentalmente europeu, importado correntes, escolas e sistemas previamente definidos no seu conteúdo e orientação;
- Uma tendência para a receptividade universal – a filosofia sul-americana manifestou sempre uma tendência aberta em aceitar todo o tipo de produção teórica das mais variadas origens, quer através de escolas, quer tradições, com estilos e propósitos variados. Ora, esta tendência para a receptividade acrítica, denuncia falta de substância nas suas próprias ideias e convicções;
- Uma ausência de tendência caracteristica – a filosofia latino-americana não se mostra capaz de ter uma posição pró-activa, conceptual e ideologica, tendente a fundar uma tradição de pensamento e definir um perfil próprio. Por exemplo, no caso do pensar britânico é perceptível um estilo diferencial típico – que é o empirista – e que marca os contornos dos seus ideais especulativos, tal como aconteceria com o filosofar francês (racionalista). No caso da filosofia latino-americana, não se vislumbra qual possa ser esse perfil, na falta de uma visão substantive e distintiva;
- Uma falta de contributos e ideias novas – a filosofia latino-americana não mostra ter algum contributo para incorporar na tradição do pensamento mundial. Não há um sistema filosófico de matriz latino-americana, uma doutrina com significado no conjunto do pensamento universal ou, sequer, a existência de um conjunto de ideias próprias.
Relativamente a soluções face a esta carência e inautenticidade que a caracteriza, Salazar Bondy acreditava que ainda era possível inverter o rumo, através de uma conversão em consciência lúcida dessa condição mistificante (dominada e alienada) e da consequente capacidade de a superar (compromisso vital).
Isto significa que a filosofia latino-americana tem que se tornar uma consciência crítica e analítica das possibilidades e exigências da sua afirmação (latino-americana), enquanto matriz de humanidade plena. A filosofia deve ser, pois, uma ferramenta e uma simbiose teoria-prática a qual deve ter a noção da provisoriedade e carácter instrumental das ideias, não as tomando como modelos absolutos e inertes, acríticas e repetidas mecanicamente.
A limitação do pensar latino-americano
Segundo Salazar Bondy, a filosofia latino-americana constituiu-se ao longo de sua história como já se referiu atrás, um produto sem originalidade e autenticidade, como imitação de conteúdos filosóficos alheios (europeus) surgidos num contexto histórico diferente.
Para Salazar Bondy, o facto de a filosofia latino-americana se apresentar como inautêntica e sem originalidade ao longo de sua história, revela o carácter alienado dos países que compõem a comunidade latino-americana. Carácter alienado no sentido de que tais países são subdesenvolvidos e dependentes. Ora uma comunidade desintegrada, sub-desenvolvida e dependente expressa necessariamente uma filosofia sem originalidade e autenticidade.
Tal constatação do autor leva à conclusão de que o problema da filosofia latino-americana não é um problema da filosofia como tal, mas da comunidade latino-americana ou, para usar um outro conceito do autor, aos ‘países hispano-americanos’ tomados no seu conjunto. ‘País’ aqui é concebido pelo autor como uma: “…agrupación de gente que está en un território dentro de la jurisdición de un estado (o que facilmente podemos identificar como la Argentina, el Peru, Chile, México, Paraguay …) , com todo lo que dentro hay de divergencias, contrastes e inclusive relaciones de dominación e intereses. Vamos a entender, pues, ‘país’ en el sentido de conjuntos de sociedades globales dentro de un território y jurisdicción de un estado”. Salazar Bondy fala do conjunto dos países hispano-americanos no sentido de que possuem o mesmo status sócio-económico, político e cultural, ou seja, pertencem ao Terceiro Mundo.
Nesse caso, para explicar o fenómeno da filosofia latino-americana é imprescindível, segundo o autor, a utilização de conceitos como os de subdesenvolvimento, dependência e dominação. Tendo chegado a esse ponto, fica claro o que Salazar Bondy entende por tais conceitos para entendermos o núcleo de sua explicação sobre o carácter inautêntico e não original da filosofia latino-americana.
O conceito de dominação Salazar Bondy concebe-o como: “…una relación entre dos instancias que pueden ser personas, o clases, o países, relación tal que A domina B , tiene el poder de decisión sobre lo que es fundamental respecto a B. B, que es el dominado, sufre como resultado una depresión, una falta de posibilidades de desarrollo, una limitación, es decir, todo lo que se puede como defectivo porque el dominador lo subyuga en cuanto tiene la capacidad de decidir siempre por él.”
O conceito de subdesenvolvimento define-se para Bondy como um “… estado de depresión y desequilibrio crónico en que están los países que se encuentran en una determinada situación, ejemplificados por el Peru, Paraguay, Ecuador, tanbién la Argentina y otros países como pueden ser el Congo, Tanzânia, etc”.
O conceito de dependência está ligado ao conceito de dominação pelo facto de que numa relação de dominação entre duas classes, por exemplo, uma depende da outra no sentido de que se relacionam entre si de uma forma necessária, relação na qual, no entanto, uma domina a outra. Bondy exemplifica essa situação quando afirma ser este o caso ‘histórico’ dos países latino-americanos que estiveram e estão vinculados à condição de dependência. Em princípio dependentes com relação à Espanha (no caso do Brasil, a Portugal), mais tarde à Inglaterra e, no presente, aos Estados Unidos.
Ora, essa tem sido e hoje ainda é a situação desses países, cuja situação de dominação e dependência com relação aos centros de poder mundiais resultou no seu sub-desenvolvimento.
Tendo em vista tal situação é de se esperar que a cultura nos países latino-americanos resulte débil, cheia de limitações, portanto sem originalidade alguma. Considerando tal definição, é possível verificar, conforme o autor, que a cultura produzida pelos países hispano-americanos, por ser uma simples imitação de modelos culturais estranhos, surgidos de outro contexto histórico, constituíu-se como alienação e mistificação e não como resposta às solicitações e conflitos provenientes do próprio contexto histórico hispano-americano.
A filosofia como produto específico de determinada cultura de dominação resulta, nesse sentido, como uma filosofia de dominação (alienante), sem originalidade e autenticidade, sem espírito criativo.
Seria o caso, segundo o autor, da filosofia latino-americana.
Carlos A. Gomes