1. ‘A felicidade paradoxal’
A expressão ‘felicidade paradoxal’ tem sido usada recorrentemente na área da sociologia e da filosofia da cultura, para designar o estado de espírito do homem na sociedade contemporânea. Gilles Lipovetsky consagrou esta expressão num livro com o mesmo título, numa base eminentemente paradoxal, ou seja, para balizar uma sociedade de alto rendimento, expansiva e global, mas, ao mesmo tempo, para qualificar uma sociedade de mal-estar crescente, caracterizada por dois parâmetros fundamentais: a) ansiedade hedonista; b) frustração consumista. A vertente distractiva do ‘homo festivus’ (individualista e narcísica’) alia-se à vertente mundialista da incerteza e insegurança existenciais, determinadas pela ditadura crescente dos mercados (globais).
Há como que uma carência perpétua que determina o ser e o estar pós-Modernos, originando em si um vazio crescente. Pode dizer-se que esta ‘inflação deceptiva’,essa distanciação com o futuro, está patente na desregulação e enfraquecimento dos dispositivos de socialização e dos sistemas de sentido englobante que sinalizavam o futuro na Modernidade. Hoje, ao invés, a cultura presente é uma cultura de desencantamento e consumo emocional, de comercialização dos modos de vida. A crescente financiarização da economia inflacionou os princípios da precaridade, inquietude e pluralização éticas. Por conseguinte tudo se torna descartável e frágil, ou, para utilizar um conceito caro a Z.Bauman,’líquido’.
A felicidade deixou de ser um estado de espírito visando um tempo futuro, para se tornar refém do prazer imediato, animado e ‘espectacular’.Esta cultura do presente, lúdico-hedonista, sem fundo substancial elimina igualmente quaisquer formas de ruptura, absorvendo dissidências ou divisões, através da absolutização e culto do Novo. A crítica é absorvida e recauchutada pelo culto do presente imediato, e do prazer do ‘show-fast’ das industrias culturais. A música (festivais de verão) e o desporto (futebol profissional) são disso, dois bons exemplos.
Ora, a globalização de corrente da uniformização cultural das sociedades contemporâneas, deixa atrás de si um sentimento de desejo nunca satisfeito, um ideal nunca atingido, pois o consumismo emocional do Novo e a sua consequente redução do tempo de vida, geram uma angustia nunca resolvida.
É este o sentido da crise cultural (moral) que atravessamos no chamado ‘estado pós-Cultura’: a dignidade da cultura era um fenómeno de criação, hoje o seu simulacro assenta no consumo!
2. Hipercapitalismo e religião do consumo
O hipercapitalismo, como Lipovetsky lhe chama, torna-se o império da mundialização mercantil, temperada pela lógica de proliferação da variedade e diversificação transnacionais, do jornalismo, da música, das artes da televisão, e internet. Também no que se refere ao mercado livreiro e internautico, as coisas funcionam de modo idêntico, atentando na realidade constatado por todos, e que o pensador francês se faz eco, em A Cultura-Mundo:
”O mercado do livro revela a mesma diversificação prolífica, com uma produção que, no que respeita apenas à França, ultrapassa actualmente os 50000 livros novos por ano, quando era de 30000 há dez anos. Nos Estados Unidos, as editoras publicaram 1,3 milhões de títulos no decurso do século que medeia entre 1880 e 1980 e mais de 2 milhões em 20 anos, a partir dos anos 80 (…) Quanto à internet, o seu crescimento explosivo levou a que, no decurso de alguns anos, a proliferação dos sítios se tornasse exponencial. Em matéria cultural, tal como em todos os outros sectores do mercado, a época hipermoderna é menos modelada pelos processos de padronização de massa do que pelas opções e diferenciações enormemente multiplicadas, a excrescência da oferta, a segmentação extrema dos mercados e a rapidez da renovação dos produtos.”
Desde modo, elas já não são mais que simples negócios ou fins comerciais, transformando-se em poderoso elemento de dominação social e em pura ideologia (obedecendo a uma lógica declarada de interesses). A aliança capital (dinheiro)/mercado (indústria cultural), contribui para falsificar as relações entre os homens e a sua ligação à natureza, passando aquela a constituir-se como uma espécie de anti-iluminismo. De libertação, a ‘cultura’ passa a ser sinónima de dominação e alienação, utilizada para mecanizar o homem, mesmo se travestida sob forma de diversão ou lazer.
A distracção é afinal uma simples cópia e extensão do próprio trabalho e das suas rotinas. Daqui se segue toda uma série de ‘espelhos’ e ‘sonhos prometidos’ (como o já célebre american way of life) mas nunca cumpridos, fazendo converter o desejo de abundância e felicidade, numa infinita busca, sempre convertida em negação, de mero consumidor passivo. A religião consumista, envolvente das indústrias do imaginário, torna-se como que uma forma planetária de imposição de um paradigma cultural cosmopolita, desse ‘american way of live’ de pensar, sentir e viver, embora já não inteiramente uniforme, mas ajustável à multiplicidade das interacções culturais e dos particularismos regionais e locais.
Na verdade, o verdadeiro problema da sociedade pós-Moderna, é a invasão da mentalidade mercantilista e quantificadora a todos os domínios do pensamento, representando economicamente o valor de troca, e associando aos processos de alienação do homem, a modos de um totalitarismo electrónico. O valor táctico vital, é, em qualquer caso, sempre objecto de regulação, força e incentivo ou estimulação. Por isso, esta religião do consumo surge como conduta activa e colectiva, mesmo como instituição, já que não é apenas fruição, mas essencialmente dever, à maneira de um fun system, como afirmava Baudrillard.
Detectando a dissolução generalizada e nociva das fronteiras entre a informação, consumo, entretenimento e política, ocasionada pelos mass media, aquilo a que poderíamos chamar ‘cultura’, são afinal simples mercadorias obedecendo a uma estratégia planificada de controlo social. Em vez de elevação da ‘razão crítica’, assistimos a uma vaga de alienação e ‘coisificação desracionalizadas’, formadoras do modo de vida contemporânea. A técnica, ao permitir essa difusão massificada, está ao serviço do ‘interesse’ dominante de todas as corporações do entretenimento, persuade através da publicidade e da propaganda, manipulando o cidadão e induzindo-o ao consumo desregulado, gastando dinheiro e alimentando, com isto, a indústria e o mercado técnico-mercantil (sistema).
Lipovetsky, de resto, refere-se a este totalitarismo económico dos mercados, quando refere que a própria cultura passou a estar sujeita a um claro domínio das multinacionais americanas, e a uma tendência crescente de concentração das indústrias da comunicação. A vida gira, pois, sempre em torno da eficácia e do binómio ilimitado produção-consumo acrítico, assente na absolutização da distinção e desejo de mobilidade. É por isso que assistimos a uma aceleração sistemática de expansão e procura de tudo o que é novo, raro, distinto e ‘actual’, libertando o princípio do prazer e livrando-o de todas as carências e inibições.
Os princípios clássicos da ubiquidade, repetitividade e estandardização manipulatórios, fazem da moderna cultura de massas ou indústria cultural, um meio de controlo manifestamente psicológico, e de condicionamento das necessidades. A comunicação torna-se sinónimo de pura astúcia e sedução, visando o critério perpétuo da rentabilidade e do lucro, remetendo o sujeito ao nível do ‘homem unidimensional’, de que nos falava Marcuse, isolado e preso na engrenagem da produtividade infinita.
3. A ideologia do Objecto e a sedução da razão instrumental
Na verdade, o verdadeiro problema da sociedade pós-Moderna, é a invasão da mentalidade mercantilista e quantificadora a todos os domínios do pensamento, representando economicamente o valor de troca, e associando aos processos de alienação do homem, a modos de um totalitarismo electrónico. O valor táctico vital, é, em qualquer caso, sempre objecto de regulação, força e incentivo ou estimulação. Por isso, esta religião do consumo surge como conduta activa e colectiva, mesmo como instituição, já que não é apenas fruição, mas essencialmente dever, à maneira de um fun system, como afirmava Baudrillard.
Detectando a dissolução generalizada e nociva das fronteiras entre a informação, consumo, entretenimento e política, ocasionada pelos mass media, aquilo a que poderíamos chamar ‘cultura’, são afinal simples mercadorias obedecendo a uma estratégia planificada de controlo social. Em vez de elevação da ‘razão crítica’, assistimos a uma vaga de alienação e ‘coisificação desracionalizadas’, formadoras do modo de vida contemporânea. A técnica, ao permitir essa difusão massificada, está ao serviço do ‘interesse’ dominante de todas as corporações do entretenimento, persuade através da publicidade e da propaganda, manipulando o cidadão e induzindo-o ao consumo desregulado, gastando dinheiro e alimentando, com isto, a indústria e o mercado técnico-mercantil (sistema). Daqui à crise da dívida’ vai um passo!!!
Lipovetsky, de resto, refere-se a este totalitarismo económico dos mercados, quando refere que a própria cultura passou a estar sujeita a um claro domínio das multinacionais americanas, e a uma tendência crescente de concentração das indústrias da comunicação. A vida gira, pois, sempre em torno da eficácia e do binómio ilimitado produção-consumo acrítico, assente na absolutização da distinção e desejo de mobilidade. É por isso que assistimos a uma aceleração sistemática de expansão e procura de tudo o que é novo, raro, distinto e ‘actual’, libertando o princípio do prazer e livrando-o de todas as carências e inibições.
Os princípios clássicos da ubiquidade, repetitividade e estandardização manipulatórios, fazem da moderna cultura de massas ou indústria cultural, um meio de controlo manifestamente psicológico, e de condicionamento das necessidades. A comunicação torna-se sinónimo de pura astúcia e sedução, visando o critério perpétuo da rentabilidade e do lucro, remetendo o sujeito ao nível do ‘homem unidimensional’, de que nos falava Marcuse, isolado e preso na engrenagem da produtividade infinita.
Tal facto torna-o um mero joguete do superfulo de necessidades fúteis, traduzíveis igualmente em simples mercadorias efémeras e perecíveis, as quais se mostram na espectacularidade estética, e encarecimento emocional das veleidades singulares. Pode dizer-se, na realidade, que existe um processo de produção concertado e mecanizado de criação e fomento de aspirações compulsivas, pauperizando psicologicamente o homem, já que o induziria a um utópico estado de satisfação gigantesca, a partir de uma propensão quase natural para a felicidade. A publicidade vai dar-lhe essa aura de espectacularidade, fantasia e sedução, que o alimentam. Da dialéctica Cultura Moderna/Cultura Hipermoderna, podemos traçar os vectores essenciais da sua distinção substancial, a partir dos binómios dever ser/desejo, conhecimento/distracção, e absolutização/efemerização. Agora, a imagem protagonizada no Écrã global, supera e extingue o valor do conteúdo centrado outrora no livro, tal como o dinheiro superou a honra!
Efectivamente, a nova ideologia do mercado alimenta-se da aceitação passiva e imediatista do indivíduo (Homem-massa), nivelando-o em facilitações, vulgaridades e mediocridades de toda a ordem. Estamos perante uma evidente lógica fetichista de consumo ‘ideológico’, que se transmuda na ideologia do Objecto dos tempos actuais, e que é formatada em mercadoria de compra, venda e troca!
Assim sendo, a sociedade de consumo torna-se justamente atractiva, justamente na sua ilusão!
4. Felicidade distractiva e festiva
Problematizar a temática da hipermodernidade, implica pensar no que é o Homem actual, o seu modo de vida, a sua sede de dinamismo. Falar de hipermodernidade, não se pode dissociar de uma nova forma de ser e estar, com valores e éticas diferentes do que existia na modernidade. A sociedade pós-Moderna afirma-se fundamentalmente pela mitologia privática da felicidade e do prazer, assente no referencial hedonista em que o paradigma de ‘viver melhor e gozar a vida’, se extrapola numa libertação freudiana do princípio do Prazer (promoção do instante), deitando para trás as amarras da coerção, da disciplina, do rigor e da renúncia tradicionais.
O lazer e os tempos livres generalizam-se em sentimentos de evasão distractiva, numa lógica de permanente desregulação e híper-individualizada. E isto mesmo acontece ao nível do consumo mais imediato, como ir ao híper-mercado fazer as compras. Ao lado de uma necessidade, há uma vontade que se compraz socialmente, distractiva e inter-activa. Hoje,vivemos uma revolução individualista do consumo (a terceira, segundo Lipovetsky),a qual se traduz mais do que em coisas concretas e palpáveis, num enriquecimento emocional, intimista e lúdico.
Esta filosofia distractiva, segue o fito de que a poupança compulsiva de tempo é condição urgente do imediato. A cultura da impaciência e da satisfação imediata também acabam por ser um imperativo ético-festivo, naquele slogan tão conhecido – ‘aquilo que eu quiser, quando quiser, onde quiser’. O presente sensualista pós-Moderno torna-se invariavelmente absoluto e auto-suficiente, embora implique uma heterogeneidade de momentos e temporalidades.
Hoje falamos de ambiências festivas e interactivas de um tempo recreativo, descomprimido, lúdico e operacional. Vivemos numa era multipolar em que tudo coexiste e se interpenetra de um modo passional e efemerizado. Todavia, há que atentar nos fenómenos que a crise pós-Moderna evidencia, e que contrariam o optimismo contemporâneo que a felicidade e o culto do divertimento e da liberdade, nos transmitem. Hoje, assistimos a um certo culto da precaridade e dos excessos: atitudes desreguladas, comportamentos desestruturados, patológicos, compulsivos, dependências…
A felicidade paradoxal é isto: mais prazeres materiais, menos alegria de viver, mais PIB, menos FIB (felicidade interna bruta)! Como Gilles Lipovetsky afirmava na sua obra ‘A Felicidade paradoxal’ ,‘o bem-estar tornou-se deus, consumo é o seu templo, e o corpo o seu livro sagrado’. A opulência material e a proliferação dos bens de consumo céleres, trouxe paradoxalmente uma agudização das insatisfações individuais. Agora, o tédio anda a par da abundância, a frustração do deleite, a rotina da inovação! O ‘homem-massa’ orteguiano está aqui em todo o seu esplendor, tendo a imagem filosófica da vulgaridade, lugar de destaque. Paisagens humanas e físicas desfiguradas, urbanismo medíocre, costas oceânicas asfixiadas de betão, praias sobrelotadas, conversas de telemóveis imbecis…..
A hipermodernidade é assim feita de ‘felicidade paradoxal’ e miséria psicológica invadindo todos os sectores da vida e da experiência humanas. Como não falar de uma decadência do espírito? Haverá ainda esperança…para a esperança ?!?