1. A consagração da sociedade do espectáculo
Guy Debord em 1967 teorizou estes ‘novos tempos’ como ‘sociedade do espectáculo’, expressão esta que viria a ficar consagrada e ligada intimamente ao fenómeno geral de uniformaização estética, absorvendo os vários domínios da realidade. A ideia central foi a de mostrar a decadência das grandes narrativas históricas e o acentuar de uma nova ordem histórica (técnico-científica) que não se legitimava em relação a nenhum fim objectivo e emancipador (busca desinteressada da verdade, fim emancipador de cariz social,etc), mas que apenas se baseava e reduzia a um puro jogo tecnocrático, autolegitimado pela sua própria dinâmica. O fundamental era que fosse suficientemente pedante para impressionar um publico sedento de sentimentos, emoções e gestos grandiloquentes! A cultura política decaíu enormemente quando a imagem se subsittuíu à palavra!
A vertente comunicacional, dialógica e inter-subjectiva cedeu o seu lugar a um formalismo mecânico de ‘slogans’ simplórios, meras etiquetas, imbuídas de emoções infinitas, mas vazias…
2. O sujeito pós-Moderno na era da imagem
Aquilo a que convencionou chamar ‘pós-Modernidade’ invade todo o espectro da realidade e todos os estilos de vida, homogeneizando-os ao sabor do rebaixamento e inversão de valores, num sentido histórico-vital. Desfeitas estas ilusões de progresso, ao nível do ideal e da consciência universais, entregamo-nos ao prazer narcísico do hiperindividual, autêntico homo psychologicus buscando o bem-estar infinito numa lógica de singularidade e auto-sedução. Actualmente, em plena época hipermoderna segundo Lipovetsky, consome-se algo como um simples jogo personalizado de bens e serviços, fomentando-se falsas carências que substituem as verdadeiras necessidades.
O indivíduo pós-Moderno, em contraste com o individualismo moderno forjado pelo liberalismo económico do século XVIII, essencialmente burguês, racionalista e progressista, é nitidamente consumista e hedonista. Mantendo uma estrita relação com a tecnociência, derivado da sociedade pós-industrial de que é produto, o indivíduo torna-se uma entidade programada e programável nos seus mais pequenos detalhes. Buscando um nível de vida e conforto cada vez mais elevados, o indivíduo aparece preso numa teia infinita de deveres e obrigações que o deixam optar por escolher entre uma infinidade de propostas, mas não a opção de não consumir!
Perante a saturação infinita de informações e estímulos-clip (ritmos apressados), o indivíduo acaba por desmobilizar e despolitizar-se. O indivíduo pós-Moderno é consumista, na sua essência, mas flexível nas ideias, como que embarcando na onda de mudança que varre todo o último quartel do século XX, e continua a fazer-se sentir em plena actualidade. A cultura hedonista estimula a que cada um se torne mais senhor e dono do seu próprio eu e da sua própria vida.
O processo de personalização do indivíduo pós-Moderno assenta no princípio eclético da personalização combinatória, convivencial e flexível de estilos, modas e fantasias, feito de liberdade de expressão e solicitude comunicacional. Assim, tornamo-nos um sujeito sem fronteiras, lúdico, descontraído e eclético, esquecendo a nossa alma original, como afirmava Spengler. Surgido do desencanto com a Modernidade e com as certezas relativamente à razão, progresso, cientismo e objectividade, as pessoas tornaram-se descrentes, pessimistas, ’neutras’…
Não estaremos nós a sentir agora, o cansaço deste novo ritual desconstrutor e vazio de valores, linguagens e ideologias?
3. A força ilusória da imagem e a procura de auto-satisfação
Seguindo de perto o espírito e a letra da reflexão lipovetskiana, com a categoria de espectáculo, anuncia-se, de alguma maneira, a generalização da sedução, na medida em que o espectáculo designava a «ocupação da parte principal do tempo vivido no exterior da produção moderna» (vide G. Debord),e que o mesmo passou de elemento marginal a elemento fundamental das sociedades. Libertando-se da clausura da superestrutura e da ideologia, a sedução tornou-se a relação social dominante, isto é, o princípio de organização global das sociedades da abundância, ou de alto rendimento (finais dos anos 80 e 90). Todavia, esta promoção da sedução, assimilada à época do consumo, depressa revelou os seus limites, consistindo a acção do espectáculo em transformar o real em representação falsa, em alargar a esfera da alienação do sujeito,conforme mostrou Gilles Lipovetsky.
Enquanto «ideologia materializada», ou «predomínio da satisfação», o espectáculo, a despeito da sua radicalidade, não se desembaraçou das categorias próprias da era revolucionária (a alienação e o seu outro, o homem total, o «senhor sem escravo»), mas tornou-se decadente precisamente sob o efeito do reino alargado da mercadoria. Seduzir, enganar por meio do jogo das aparências tornou-se um elemento nuclear pós-moderno, pois:
- o pensamento revolucionário, mesmo quando atento ao novo, continuava a ter que localizar uma sedução negativa para levar a cabo a sua inversão:
- a sedução tornou-se tributária do tempo revolucionário-disciplinar, a teoria do espectáculo reconduzia a versão eterna da sedução, da astúcia, da mistificação e da alienação das consciências.
Com a profusão empolgante e luxuriante dos seus produtos, imagens e serviços, esta nova forma de hedonismo que induz uma plena aceitação com o seu clima eufórico de tentação e proximidade ao eu, a sociedade de consumo revela facilmente a amplitude da estratégia da sedução. Esta não se reduz, no entanto, ao espectáculo da acumulação; mais exactamente, identifica-se com a ultra-simplificação das opções que a abundância torna possíveis, com a vasta gama dos indivíduos mergulhados num universo transparente,aberto e livre, oferecendo um número cada vez maior de escolhas e combinações por medida. E estamos apenas no começo, esta lógica alargar-se-á inelutavelmente à medida que as tecnologias e o mercado puserem à disposição do público uma diversificação cada vez mais vasta de bens e de serviços, como aliás já hoje acontece nas recentes tecnologias de informação.
Já hoje, o self-service, a existência à lista, caracterizam o modelo geral da vida nas sociedades contemporâneas que proliferam de modo vertiginoso nos mass media, no leque de produtos expostos nos centros comerciais e hiper-mercados arrebatadores, nos grandes armazéns ou em restaurantes especializados, etc.
É assim a sociedade pós-moderna, caracterizada por uma tendência global no sentido de reduzir as relações autoritárias e dirigistas, e simultaneamente aumentar a gama das opções privadas, privilegiar a diversidade, oferecer fórmulas de «programas independentes», na expansão dos desportos de aventura e de risco, nas tecnologias de ponta, no turismo da natureza ou noutros mais especializados, na moda sempre nova e revigorante, nas relações humanas e sexuais, enfim.
A sedução nada tem a ver com a representação falsa e com a alienação das consciências; é ela que agora configura o nosso mundo e o remodela, segundo um processo sistemático de personalização cuja obra consiste essencialmente em multiplicar e diversificar a oferta, em propor mais para que nós decidamos mais, em substituir a coacção uniforme pela livre escolha, a homogeneidade pela pluralidade, a austeridade pela realização dos desejos.
A época actual é, pois, uma época marcada em toda a linha pela expansão do desejo privático individualizado, pela procura do elemento mais prazenteiro, isto é, trata-se do triunfo completo e total do inconsciente sobre o elemento racional. Freud deveria ficar feliz, ao ver semelhante triunfo da sua dimensão verdadeira, o ‘infra-eu’ que superou o ‘eu’…
Mas não será este exactamente o grande perigo que hoje nos espreita? Como distinguir verdade e falsidade, como privilegiar o bom e afastar o mau, se tudo ganha direitos de cidadania e se as mercadorias não nos permitem distinguir substantivamente, o seu real valor? Haverá ainda hoje lugar para o valor, se o único critério é…a liberdade e a subjectividade individualizada?
4. Radiografia filosófica do ‘Homem Global’
- A pós-Modernidade surge-nos como uma nova visão do homem e do mundo na passagem dos séculos XX para o XXI, através do incremento e disponibilização das novas tecnologias de informação e de mobilidade material;
- O Homem do séc. XXI é uma entidade polivalente, vivendo um conjunto simultâneo de dimensões (económica, social, política, cultural) governadas pelos princípios ‘sagrados’ da democracia representativa e dos direitos humanos subjectivos;
- As identidades subjectivas tornam-se fragmentadas, multifacetadas, plurais;
- O ecrã torna-se o instrumento de trabalho privilegiado;
- O sistema global vigente é o do capitalismo global;
- Vive-se na realidade do ‘infotainment’, realidade mista de informação e entretenimento (distracção) inundada pela policromia das imagens rápidas, da música techno e de software tecnológico;
- O dinheiro é a medida de todas as coisas, e o individualismo a sua forma;
- Os mercados financeiros ficam cada vez mais desregulados, pela procura irracional da maximização do lucro;
- A felicidade pessoal transforma-se, ela mesma, em mercadoria de uso, sujeita às regras da transacção;
- O lugar próprio do Homem global é a Cidade, sede da cultura cosmopolita global;
- O homem contemporâneo vive na base do facilitismo e do simplismo, acreditando na verdade do ‘just do it’, pois tudo é possível realizar-se a partir do desejo mais pessoal (crença na liberdade total sem limitações);
- Promove-se mundialmente dois modelos de ‘vida boa’: celebridade (fama) e sucesso financeiro (riqueza);
- As formas de vida passam a ser quantificáveis e mensuráveis (seriadas e classificadas em rankings);
- Acredita-se cegamente no poder da quantificação, dogmatizando-se o lado numérico e funcional (positivista) da vida como mero meio, tornando-o um elemento lúdico e irracionalizando os fins;
- Procura-se o optimismo e fomenta-se o utilitarismo desenfreados, na busca intensa da felicidade e do prazer;
- O Homem global é produto e produtor de uma cultura que sobrevaloriza a juventude (desejo), a beleza (imagem), a sedução (atracção), e valoriza o relativismo superficial dos conteúdos;
- A vida torna-se um objecto de reconhecimento das identidades subjectivas, privilegiando-se o lado emocional, variado e espectacular, sujeita a comparações, interesses e voyeurismos de toda a espécie;
- A educação passa a adoptar padrões cada vez mais liberais e flexíveis, cujos fins são apenas a competição (jogo) e a riqueza (ganhar dinheiro);
- Tendência para a mundialização das formas e estilos de vida e para a aculturação sócio-cultural;
- A pós-Modernidade é a sede do indivíduo fragmentado, heterogéneo e descentrado, cuja razão longe de ser prática, se converte numa razão dogmática, instrumental e única fazendo dos sujeitos entidades não autónomas, passivas e acéfalas.