RAUL BRANDÃO
Heraclito de Éfeso (540 a.C. – 470 a.C.) foi um filósofo pré-socrático, e recebeu o cognome de “pai da dialética”. Problematizou a questão do devir (mudança) e recebeu a alcunha de “O Obscuro”, pois desprezava o vulgo, recusando-se- a participar na vida política (que era essencial aos gregos), e tinha também desprezo pelos poetas, filósofos e pela religião, em geral! A sua alcunha derivou principalmente do livro por si escrito(‘Sobre a Natureza’) ,o qual escreveu num estilo deveras obscuro e enigmático. Heraclito definiu, partindo de seus pressupostos (o “panta rhei” e a guerra entre os contrários) uma arché, um princípio de todas as coisas, o qual personificou na figura material do fogo. O Fogo é, assim, uma espécie de ‘matéria arquetípica’ estrictamente ligada com a ‘psyché’, a ‘dynamis’ e com a vida, no seu todo.
Para ele,
“todas as coisas são uma troca permanente
do fogo, e o fogo, uma troca permanente de todas as coisas, assim como o ouro é uma troca
de todas as mercadorias e todas as mercadorias são uma troca do ouro”,
ou seja, todas as coisas transformam-se em fogo, e o fogo transforma-se em todas as coisas, através do Logos, seu guia divino, autêntico princípio subjacente e organizador do ‘kosmos’.
Dos seus escritos restaram poucos fragmentos, só encontrados em obras posteriores, e que geraram grande número de obras e análises explicativas.
O amor sensista de uma natureza inteligente e natural, por parte de Raul Brandão, assemelha-se, de facto, ao Logos heraclitiano, cujo operar simbólico e captável pelos sentidos é o espelho das suas perfeições e do nosso inevitável reconhecimento do ‘Sinto, logo existo’. A visão clássica da natureza natural, móvel e dinâmica corporizada na metáfora da luz, radica nessa essência figurativa, apreendida estético-afectivamente pelos sentidos no ecoar do Devir e no absurdo do Nada.
Manifestando algumas matrizes heraclitianas, também para Raul Brandão, o sentido último do Ser é qualquer coisa que se assemelha ao Logos, como sentido de Razão de Tudo ou Unidade, que é a força motriz e criadora da mudança, ou devir. Também para Raul Brandão, a imagem Natureza comporta uma forma de organização absolutamente sábia, uma força activa vivificante, que só pode encerrar uma dimensão intelectiva, universal e divina. Ela é, pois, a imagem de Deus! Refere Brandão que,
“(…) sempre cuspindo-nos dor e negrume- sempre em corropio e levando-nos já transfigurados e sem corpos, para o eterno movimento universal – redemoinhando sempre, redemoinhando por toda a eternidade” (ID,p.142).
Há como que uma cosmologia (pan) vitalista, em que se explica o carácter de transformabilidade e universalidade das coisas e dos seres como a própria lei da Vida, ou Justiça Cósmica. Esta exige uma lógica suprema de harmonia, estabilidade e solidez, não significando passividade ou mesmidade, antes uma finalidade própria, um ‘telos’:
“As grandes paisagens que morrem a alguma parte hão-de ir” (ID,p.128).
A luta dos contrários constitui-se como um ‘mal’ necessário, simbolizado pela imagem física do ‘fogo’ nos seus diferentes estados, e que tudo leva, tudo derruba,de um modo aparentemente anárquico, mas afinal de contas, inteligente. Fazendo um paralelismo entre a engrenagem (Logos) da natureza com o ‘maquinismo do navio’ (Fogo) em que viaja, Raul Brandão afirma,
“Este complicado maquinismo ilumina o barco, transforma a água e faz mover as hélices.(…) Mas a alma do transporte é o fogo. È o fogo que faz girar os dois grandes veios de aço, que atravessam o barco em toda a sua extensão até ás hélices” (ID,p.33).
O Logos é, no entender de Heraclito, a fórmula unificadora ou método proporcionado de disposição das coisas – ou seja, o plano estrutural e divino das coisas. Está associado à ideia de ‘movimento’, ’cálculo’, ’proporção’. Apesar da aparente dispersão e diferença, as coisas estão realmente unidas num complexo coerente e divino, e equilibram-se contínua e reciprocamente numa unidade superior. Também para Brandão, o rosto de uma natureza material mas inteligente, é desenvolvida em imagens expressivas e figurativas de um simbolismo de comunhão instintivo e sensista, constituindo como que um círculo (Vida/Fantasmagoria; Beleza/Cores; Sonho/Luz; Verdade/Felicidade). Esta ‘inteligência de medida’ é imanente ás coisas como um deus – o Logos – garante da mudança e dinamismo cósmico, proporcional e equilibrado (coerência e unidade).
Raul Brandão considera que não é pelo conhecimento integral, conceptual, teórico, intelectualista que podemos compreender o real sentido da Vida, do Ser, ou de Deus, mas é tão só a partir do ‘conhecimento’, do ‘sentir’ da Natureza ‘in aenigmate’, que implica uma ordem substancial e fundante e uma ‘inteligência oculta’ ,é que o Homem pode verdadeiramente pode alcançar o seu sentido mais completo e radical, tornando-se um autêntico ‘descobridor da natureza’.
Tal como afirmava Alberto Caeiro quando dizia:
“Ainda assim, sou alguém.
Sou o Descobridor da Natureza.
Sou o Argonauta das sensações verdadeiras.
Trago ao Universo um novo Universo
Porque trago ao Universo ele próprio.”
O instrumento de descoberta é, como não podia deixar de ser, o barco, correlativo à ideia jónica de água. Barco fonte de tantas e tão intensas expressões clássicas, barco esse que Brandão também utiliza como instrumento de descoberta dessa natureza fisicista e ontologicamente fundante em ‘As Ilhas Desconhecidas’, permitindo-lhe a navegação plena dos sentidos e o captar profundo dessa essência oculta mas manifestável pela constante e harmónica mudança e pelo perpétuo fluír das sensações de cor, luz e som que se vão fazendo eco no seu espírito!
Na sua outra obra emblemática que se reportam a esta natureza sensível (‘Os Pescadores’), que é o acontecer do mundo, Brandão capta uma natureza sensista, fenoménica e paisagista com a criatividade de um artista e os olhos de um pintor, e expressa-a sob um ponto de vista moral a realidade como sinónimo de dor e sofrimento, visando alcançar a compreensão do logos inerente a ela, como uma espécie de ascensão última a um estado final de conhecimento e liberdade.
Por outro lado, esta ideia de ‘vinculum substantiale’ é captado não pelo abandono do humano, mas, pelo contrário, pela própria intimidade do sentimento de inquietação existencial que se constitui como a cifra da nossa limitação e que é também uma indesmentível marca clássica – o sentimento de brevidade e efemeridade da vida, realçando o nosso carácter de angústia e finitude.
Viver é sempre drama, algo que nos potencia o bom, o maravilhoso, a beleza, mas também o que há de terrível, angustiante e horrendo no acontecer histórico, ou seja, o absurdo da morte.
Estamos perante uma autêntica filosofia da ‘consciência inquieta’, uma consciência que se interroga a si prórpia através do espanto natural do existir e que se perpetua num impulso indizível para a unidade do ser, como sentido e finalidade cósmicas. Como diz o aforismo ‘natura tendit in Deum’, aqui considerando o Ser ou Deus como o próprio Logos cósmico.